Em virtude de problemas de saúde com nosso colaborador, escritor Francisco Neto, que já está se recuperando, publicaremos um texto do jornalista Franklin Jorge, da Série: "O CÉU DE CEARÁ-MIRIM", com sua autorização, a quem agradecemos.
EVOCAÇÃO DE NILO PEREIRA
- Franklin Jorge -
Um homem desce lentamente a Rua do Patu, ao entrar na cidade, com o coração de criança.
Lá embaixo, na manhã fria e cinzenta, está o vale, submergido em brumas imemoriais. A planície verde é um êxtase para os olhos. O canavial leve ondula ao vento da manhã da criação.
Para este homem, que sonha escrever um livro, é uma graça estar no Ceará-Mirim. Um livro inspirado pela memória da infância, escrito por quem bebeu a água da fonte do engenho Diamante, cristalina e sonora, e guardou os segredos e sortilégios da terra.
Sabem todos que esse homem viaja sempre no tempo e que um dos seus encantos é voltar ao Ceará-Mirim. Ninguém terá deixado de conservar na memória aquilo que é um legado do coração, afirma Nilo Pereira.
Passam os anos. Tudo é fugidio e efêmero. Se não fosse o amor, nada escaparia ao que Machado de Assis chamou de “o naufrágio das ilusões”.
A vida vai ensinando o que ela é, com efeito, um tecido de emoções.
Somos hoje o que começamos a ser na infância e na adolescência.
É preciso parar um pouco para ouvir esse passado, para ouvir essas vozes... E, muitas vezes, só regressando às origens, aos cenários distantes, é que há repouso.
A impressão que se tem é que o êxito esgota o espírito humano. Nada é mais ilusório. Cada um tem a sua ilha, a sua utopia, seja Massangana, Pasárgada, Panom ou o Verde-Nasce.
Nessas ilhas há uma fuga ao mundo, à glória, ao êxito, ao que parecer o definitivo e é talvez o mais efêmero...
Uma paisagem imortal...
Um canto de menino...
Um pequeno mundo maior do que o grande mundo...
Nilo sabe que ninguém pode viver sem a poesia da infância, que é o tempo restituído ao homem na sua essencial pureza.
Toda vez que volta ao Ceará-Mirim, Nilo sente a alma de novo restituída à terra. Cada pedaço de chão é sagrado, pensa, ao caminhar.
Nada melhor quando a própria cidade pára no tempo, porque a velha realidade não precisa de esforço para ser a paisagem que o menino procura de volta.
Lá do alto, à entrada da cidade, tudo se mostra como se o tempo houvesse mesmo parado.
Ruas estreitas de burgo medieval, ladeiras românticas, o casario posto em sossego, eis a cidade adormecida em sua própria lembrança.
As imagens do Ceará-Mirim são como vitrais duma Igreja. O sol mais forte lhes dá luminosidade e vida; empresta-lhe o brilho das coisas intangíveis, a alegria da permanência.
Nilo vai logo à Igreja e no altar da Virgem da Conceição põe a sua esperança e o seu enlevo de penitente. Ele pede à Padroeira, que ama desde menino, com a sua coroa de estrelas e o seu manto azul, que lhe faça feliz voltando sempre, sempre, como se nisto estivesse o melhor si mesmo. E, na sua imaginação, esse manto se desdobra, infinitamente, cobrindo a cidade e o vale, tomando o céu todo e, à noite, expandido, cobre-se de estrelas.
Do alto do campanário, Nilo contempla o vale edênico, numa promessa de beleza como se ali, todos os dias, nascesse a criação, e o Gênesis fosse o livro do homem, o breviário da terra prometida. Na verdade, tudo ali é eterno; a paisagem, o homem, as coisas, as reminiscências, os lugares, as pedras, os pássaros, os rios, os caminhos, o verde singular daquele paraíso onde a mão de Deus, por um momento, pairou, misteriosa e criadora.
Nilo começo sempre essa visita pela Igreja onde foi batizado, e de onde, espraiando a vista sobre o vale, tem a visão do sonho desfeito: ao longe, emoldurada de verde, a casa-grande do engenho Guaporé emerge da sua quimera solitária, sob a guarda mística de carnaubeiras que parecem círios velando a solidão romântica...
A Igreja sofreu reformas desfiguradoras. Nilo procura no altar-mor as colunatas douradas e os corucheus góticos, inspirado na igreja do Carmo, o templo mais antigo da cidade de São Paulo. A Igreja majestática, hierática, sobre uma ladeira macia, bastante grande para caber o vale e a cidade, tem a solidez de um símbolo querido.
Recorda o oratório de maio, a mais íntima e piedosa das celebrações religiosas do Ceará-Mirim, que resume toda uma tradição familiar. Assinala a constância da fé, a religião simples e autêntica, que veio de longe pelas gerações crédulas que jamais mentiram ao seu destino.
Homem afeito às doçuras da infância, Nilo alonga os olhos sobre o vale, procurando os pontos de apoio da meninice distante. O Guaporé, reduto da civilização rural, cidadela do sonho perdida nos mistérios do tempo. O vale é esplendoroso e opulento. Até a morte dos engenhos é ali rica, faustosa, hierática. Tudo ali, de tão verde, parece um mar, um mar de caravelas fantásticas, oscilando ao vento brando que encrespa levemente o canavial.
Nilo recorda as cheias do rio Ceará-Mirim, que o deixavam atônito. No verão, lá estava o rio sem água, o leito seco e estéril, um deus agonizante, quase morto. A ponte em arco, pintada de vermelho, parecia-lhe simples adorno.
Mas acontecia que um dia o rumor das águas levava à cidade ao espetáculo dantesco das enxurradas. O rio descia em cheias espantosas, inundando o vale. Um divertimento era ver os meninos da rua pularem do alto dos arcos da ponte sobre aquele mundo líquido, em convulsão. Eram extraordinários nessa acrobacia aquática. Davam saltos no ar, como gênios alados, e precipitavam-se no rio entregando-se ao destino incerto das correntezas, misturando-se com animais, troncos de árvore, imundícies, tudo aquilo que a água trazia no seu descompasso de deusa enfurecida.
Nilo contempla a visão. Reanimam-se os cenários. É um dia claro e lúcido, como podia ser uma noite escura e densa; as luzes do vale, como pirilampos, vêm do seu mistério humano, do seu poder mágico, do seu misticismo, tudo a ondular na paisagem como tangida pelo gênio da legenda sagrada.
Em todo o vale os engenhos pontilham uma civilização, a do ciclo da cana do açúcar, reunindo grandes famílias patriarcais, exploradoras da terra, mas com um sentido aristocrático que evoca em seu espírito as antigas famílias olindenses, com caleças e berlindas, mantilhas sevilhanas, louça e prataria da Inglaterra, vivendo nas amplas casas senhoriais de fachadas de azulejos.
Dos pontos mais elevados da cidade, descendo as encostas suaves e refazendo velhos caminhos, vê-se o solar, e para quem lhe conhece a história e sentiu a emoção dos seus fastos políticos e sociais, há uma impressão estranha que cala fundo na alma de Nilo: as figuras do seu passado ainda estão vivas, ainda conversam nas amplas salas decoradas, ainda perscrutam da soleira da porta heráldica o mistério do vale; e ali, ainda se ouve as valsas do começo do século. Porque o Guaporé da sua infância tem sua história, que não é só uma história política e econômica, mas sentimental e afetiva. Na calçada do velho Guaporé havia outrora cadeirinhas douradas.
Nascido no engenho Verde-Nasce, pertencente ao seu avô Victor José de Castro Barroca, formado pelo Curso Jurídico de Olinda, em 1844, Nilo lembra que ali também nasceu o poeta Antonio Glicério, que deixou um livro inédito e era filho da escrava Sancha.
Já no patamar da Igreja, onde pensa que estão para chegar os que chegavam em outras épocas, uns em suas caleças, outros nos seus cavalos, outros a pé, Nilo olha, enternecido, a cidade, o pátio, a praça larga em descaída, como se quisesse caminhar para o vale, as ruas os engenhos, cujos nomes vai dizendo baixinho. Lá estão como sentinelas do tempo. Uns morreram, outros vivos. Mas ele todo está vivo no milagre do reencontro. Para todos os lados é o verde infinito e multitudinário.
A segunda visita de Nilo é ao cemitério, onde vai ler os nomes de quantos viveram para servir à terra.
Lá embaixo, na manhã fria e cinzenta, está o vale, submergido em brumas imemoriais. A planície verde é um êxtase para os olhos. O canavial leve ondula ao vento da manhã da criação.
Para este homem, que sonha escrever um livro, é uma graça estar no Ceará-Mirim. Um livro inspirado pela memória da infância, escrito por quem bebeu a água da fonte do engenho Diamante, cristalina e sonora, e guardou os segredos e sortilégios da terra.
Sabem todos que esse homem viaja sempre no tempo e que um dos seus encantos é voltar ao Ceará-Mirim. Ninguém terá deixado de conservar na memória aquilo que é um legado do coração, afirma Nilo Pereira.
Passam os anos. Tudo é fugidio e efêmero. Se não fosse o amor, nada escaparia ao que Machado de Assis chamou de “o naufrágio das ilusões”.
A vida vai ensinando o que ela é, com efeito, um tecido de emoções.
Somos hoje o que começamos a ser na infância e na adolescência.
É preciso parar um pouco para ouvir esse passado, para ouvir essas vozes... E, muitas vezes, só regressando às origens, aos cenários distantes, é que há repouso.
A impressão que se tem é que o êxito esgota o espírito humano. Nada é mais ilusório. Cada um tem a sua ilha, a sua utopia, seja Massangana, Pasárgada, Panom ou o Verde-Nasce.
Nessas ilhas há uma fuga ao mundo, à glória, ao êxito, ao que parecer o definitivo e é talvez o mais efêmero...
Uma paisagem imortal...
Um canto de menino...
Um pequeno mundo maior do que o grande mundo...
Nilo sabe que ninguém pode viver sem a poesia da infância, que é o tempo restituído ao homem na sua essencial pureza.
Toda vez que volta ao Ceará-Mirim, Nilo sente a alma de novo restituída à terra. Cada pedaço de chão é sagrado, pensa, ao caminhar.
Nada melhor quando a própria cidade pára no tempo, porque a velha realidade não precisa de esforço para ser a paisagem que o menino procura de volta.
Lá do alto, à entrada da cidade, tudo se mostra como se o tempo houvesse mesmo parado.
Ruas estreitas de burgo medieval, ladeiras românticas, o casario posto em sossego, eis a cidade adormecida em sua própria lembrança.
As imagens do Ceará-Mirim são como vitrais duma Igreja. O sol mais forte lhes dá luminosidade e vida; empresta-lhe o brilho das coisas intangíveis, a alegria da permanência.
Nilo vai logo à Igreja e no altar da Virgem da Conceição põe a sua esperança e o seu enlevo de penitente. Ele pede à Padroeira, que ama desde menino, com a sua coroa de estrelas e o seu manto azul, que lhe faça feliz voltando sempre, sempre, como se nisto estivesse o melhor si mesmo. E, na sua imaginação, esse manto se desdobra, infinitamente, cobrindo a cidade e o vale, tomando o céu todo e, à noite, expandido, cobre-se de estrelas.
Do alto do campanário, Nilo contempla o vale edênico, numa promessa de beleza como se ali, todos os dias, nascesse a criação, e o Gênesis fosse o livro do homem, o breviário da terra prometida. Na verdade, tudo ali é eterno; a paisagem, o homem, as coisas, as reminiscências, os lugares, as pedras, os pássaros, os rios, os caminhos, o verde singular daquele paraíso onde a mão de Deus, por um momento, pairou, misteriosa e criadora.
Nilo começo sempre essa visita pela Igreja onde foi batizado, e de onde, espraiando a vista sobre o vale, tem a visão do sonho desfeito: ao longe, emoldurada de verde, a casa-grande do engenho Guaporé emerge da sua quimera solitária, sob a guarda mística de carnaubeiras que parecem círios velando a solidão romântica...
A Igreja sofreu reformas desfiguradoras. Nilo procura no altar-mor as colunatas douradas e os corucheus góticos, inspirado na igreja do Carmo, o templo mais antigo da cidade de São Paulo. A Igreja majestática, hierática, sobre uma ladeira macia, bastante grande para caber o vale e a cidade, tem a solidez de um símbolo querido.
Recorda o oratório de maio, a mais íntima e piedosa das celebrações religiosas do Ceará-Mirim, que resume toda uma tradição familiar. Assinala a constância da fé, a religião simples e autêntica, que veio de longe pelas gerações crédulas que jamais mentiram ao seu destino.
Homem afeito às doçuras da infância, Nilo alonga os olhos sobre o vale, procurando os pontos de apoio da meninice distante. O Guaporé, reduto da civilização rural, cidadela do sonho perdida nos mistérios do tempo. O vale é esplendoroso e opulento. Até a morte dos engenhos é ali rica, faustosa, hierática. Tudo ali, de tão verde, parece um mar, um mar de caravelas fantásticas, oscilando ao vento brando que encrespa levemente o canavial.
Nilo recorda as cheias do rio Ceará-Mirim, que o deixavam atônito. No verão, lá estava o rio sem água, o leito seco e estéril, um deus agonizante, quase morto. A ponte em arco, pintada de vermelho, parecia-lhe simples adorno.
Mas acontecia que um dia o rumor das águas levava à cidade ao espetáculo dantesco das enxurradas. O rio descia em cheias espantosas, inundando o vale. Um divertimento era ver os meninos da rua pularem do alto dos arcos da ponte sobre aquele mundo líquido, em convulsão. Eram extraordinários nessa acrobacia aquática. Davam saltos no ar, como gênios alados, e precipitavam-se no rio entregando-se ao destino incerto das correntezas, misturando-se com animais, troncos de árvore, imundícies, tudo aquilo que a água trazia no seu descompasso de deusa enfurecida.
Nilo contempla a visão. Reanimam-se os cenários. É um dia claro e lúcido, como podia ser uma noite escura e densa; as luzes do vale, como pirilampos, vêm do seu mistério humano, do seu poder mágico, do seu misticismo, tudo a ondular na paisagem como tangida pelo gênio da legenda sagrada.
Em todo o vale os engenhos pontilham uma civilização, a do ciclo da cana do açúcar, reunindo grandes famílias patriarcais, exploradoras da terra, mas com um sentido aristocrático que evoca em seu espírito as antigas famílias olindenses, com caleças e berlindas, mantilhas sevilhanas, louça e prataria da Inglaterra, vivendo nas amplas casas senhoriais de fachadas de azulejos.
Dos pontos mais elevados da cidade, descendo as encostas suaves e refazendo velhos caminhos, vê-se o solar, e para quem lhe conhece a história e sentiu a emoção dos seus fastos políticos e sociais, há uma impressão estranha que cala fundo na alma de Nilo: as figuras do seu passado ainda estão vivas, ainda conversam nas amplas salas decoradas, ainda perscrutam da soleira da porta heráldica o mistério do vale; e ali, ainda se ouve as valsas do começo do século. Porque o Guaporé da sua infância tem sua história, que não é só uma história política e econômica, mas sentimental e afetiva. Na calçada do velho Guaporé havia outrora cadeirinhas douradas.
Nascido no engenho Verde-Nasce, pertencente ao seu avô Victor José de Castro Barroca, formado pelo Curso Jurídico de Olinda, em 1844, Nilo lembra que ali também nasceu o poeta Antonio Glicério, que deixou um livro inédito e era filho da escrava Sancha.
Já no patamar da Igreja, onde pensa que estão para chegar os que chegavam em outras épocas, uns em suas caleças, outros nos seus cavalos, outros a pé, Nilo olha, enternecido, a cidade, o pátio, a praça larga em descaída, como se quisesse caminhar para o vale, as ruas os engenhos, cujos nomes vai dizendo baixinho. Lá estão como sentinelas do tempo. Uns morreram, outros vivos. Mas ele todo está vivo no milagre do reencontro. Para todos os lados é o verde infinito e multitudinário.
A segunda visita de Nilo é ao cemitério, onde vai ler os nomes de quantos viveram para servir à terra.
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ANIVERSÁRIO DO FÓRUM
DE CEARÁ-MIRIM
(Homenagens)
Dentro das comemorações do 3º aniversário do Fórum Desembargador Virgílio Dantas em Ceará-Mirim, cuja programação vai acontecer no próximo dia 28/04, haverá uma saudação da poetisa Lúcia Helena Pereira ao "Menino do Vale": Nilo Pereira, neste ano em que celebramos o seu centenário de nascimento. A solenidade terá início as 17h00 com a palavra do Presidente do Tribunal de Justiça do RN, Desembargador Rafael Godeiro. O jurista e advogado Carlos Roberto de Miranda Gomes homenageará o também centenário Poeta, Magistrado e Escritor Edgar Barbosa. Na ocasião serão lembrados ainda os 100 anos do compositor Cartola e da atriz/cantora Carmem Miranda. No final, será servido um coquetel com apresentação da Orquestra BANT. Tudo organizado pela Senhora Juíza Diretora do Foro da Comarca de Ceará-Mirim Dra. Maria Zeneide Bezerra. Os que receberem convite poderão confirmar participação pelos fones 3274-3530 ou 3274-3636.
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