CRÔNICAS SENSORIAIS - 9ª LEMBRANÇA
Da Fazenda Santa Maria caminhávamos todos com roupas de domingo, em pleno dia da semana, para Dom Marcolino Dantas. A estrada era de barro e ao longo do percurso encontraríamos poças de lamas e somente, já próximo da casa de Zé Gado é que definitivamente lavaríamos os pés para chegar ao povoado.
Não havia capela em Dom Marcolino e as missas eram celebradas em frente ao grupo escolar, que tinha como diretora Dona Severina. Aquele dia era um encontro de alegria, onde meus pais podiam saudar seus amigos, as irmãs confabular com as colegas e nós meninos, eu e meu irmão, desfrutar de uma tarde diferente.
A missa começava com cânticos entoados por umas mulheres. O padre, como sempre, mostrava-se brabo, impaciente e sem a menor vontade de ouvir crianças conversando durante a missa. Nem chorar era permitido, que ele mandava a mãe sair do recinto com aquela criança perturbadora.
Em casa eu já havia sido advertido: “__Neto, comporte-se. Não me faça passar vergonha na frente do padre e das minhas comadres. Caso contrário quando chegarmos em casa você verá!”. Falava minha mãe e mostrava uma régua de madeira, preta, que vivia pendurada numa parede, aguardando um momento de aquecer os couros daqueles filhos que ousassem desobedecer.
Uma das coisas que me chamava atenção naquelas missas era que não tinha lamparina. O padre rezava à luz de lâmpadas a pressão. Então, o que havia de mais moderno. Finda a missa, como sempre meus pais estavam no rol dos casais que iriam ser padrinhos. Certa vez ouvi mamãe conversando com papai e dizer que já havia ultrapassado a conta de trezentos afilhados.
Mas, aquela missa, a primeira que tenho consciência que assisti, lembro que marcou minha alma. Principalmente quando em dado momento Padre Rui levantou as mãos, tendo entre os dedos uma hóstia e eu vi que todos os presentes estavam cabisbaixos, contritos, mergulhados na espiritualidade.
Eu pensei: “quando crescer serei padre!”. Tive a audácia de revelar este desejo quando cheguei em casa e foi motivo de galhofa por parte de alguns, pois minhas ações não condiziam com o espírito de quem almejava o sacerdócio. Sempre fora uma criança dada a travessuras.
Mas o tempo passou. Ventos sopraram e fizeram os coqueiros bailar em frente ao alpendre da nossa casa. Chuvas trouxeram águas que extrapolaram o leito do Rio Maxaranguape, espalhando-se por todo o vale. Inúmeras safras de cana foram talhadas e levadas à Usina São Francisco, demais eventos vieram e se foram, e, contudo, dentro de mim, no mais íntimo do meu ser, permanecia o desejo de ser padre.
Meus pais vieram para Ceará Mirim. Estudei, terminava meu primeiro grau em mil novecentos e oitenta e neste mesmo ano já me preparava através dos encontros vocacionais para ingressar no Seminário de São Pedro no ano vindouro.
Deste tempo lembro que certa vez, um domingo pela manhã, quando acolitava Padre Rui na igreja matriz de Ceará Mirim, fui por ele gritado. Nossa, aquilo me doeu demais. Fiquei chateado, deixei o Padre falando sozinho com seus nervos à flor da pele e seu comportamento extravagante e muitas vezes impreciso. Fui para casa. Mamãe bem que achou algo estranho eu tão cedo num domingo, de volta para casa antes das 10 horas. Perguntou e dei uma resposta qualquer.
Fiquei vários meses sem ajudar o padre nas atividades religiosas. Mas, num dos últimos encontros vocacionais, o Reitor Padre Hudson Brandão de Araújo, deixou bem claro que um dos documentos indispensáveis era uma carta de apresentação do pároco. E agora? Que seria de mim? Com que cara eu ia me apresentar a Padre Rui e pedir uma carta para entrar no seminário?
Criei coragem, tomei pílulas de submissão e numa noite, após a tradicional missa dominical, dirijo-me à Casa Paroquial.
__Boa noite Padre Rui. Gostaria de conversar com o senhor. Pode ser?
Ele atende-me de pé. Seus óculos deixam-me ver aqueles olhos verdes que jogam cima de mim uma liderança em extinção. Põe as mãos no bolso, faz um tradicional movimento de ficar nas pontas dos pés e voltar à posição anterior e fala-me:
__Acompanhe-me.
Entramos no seu escritório. Ele senta-se atrás do bureau e diz:
__ Quer você quer conversar?
Pela pose que o padre fez eu deduzi que estava perdido. Mas mesmo assim mantive minha reverência e com muito esforço consegui dizer:
__No próximo ano eu vou entrar no Seminário e preciso de uma carta de apresentação do pároco. Sem ela não posso ser recebido naquela instituição.
Ele fitou-me e juro, que deve ter pensando: “ ah, é! Então agora você precisa de mim!”. Pegou uma pequena máquina de datilografia, alimentou-a com uma folha de papel e escreveu algo. Retirou, grampeou, pôs dentro de um envelope e me entregou.
Agradeci. Mas confesso que sai dali mais angustiado que antes. Com o envelope nas mãos e na cabeça fervilhando mil interrogações. “Que será que ele escreveu aqui? E se ele diz que eu fiquei mais de três meses sem falar com ele? E se suas palavras foram contra mim? E...”
Pensem nos momentos que duraram uma eternidade e ademais, juntem a isto que ainda pensei: “Para que você foi inventar esta história de querer ser padre!”. Dez anos havia se passado desde aquela missa em Dom Marcolino Dantas.
No silêncio da cidade adormecida, ouvindo o relógio da igreja matriz badalar vinte e três horas, eu abri o envelope, retirei o papel e com muito cuidado desfiz o grampo. Li o seu teor e nunca esqueci. Hoje vinte e nove anos depois ainda sinto o cheiro daquela tinta que deu cor às palavras por ele datilografadas que assim diziam: “Declaro para os devidos fins que se fizeram necessários que nada me consta que desabone a conduta moral de Francisco Martins Alves Neto”.
Era aquela declaração um testemunho vivo que poderia voltar a acolitar Padre Rui Miranda nas celebrações das missas, nas realizações dos batizados e casamentos. Estavam abertas as portas do Seminário de São Pedro.
E assim, depois de tantos meses sem enviar a continuidade destas crônicas para vocês leitores, sendo até mesmo por alguns cobrados, entrego hoje, 23 de maio de 2009 a nona e última lembrança das Crônicas Sensoriais.
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