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domingo, 8 de fevereiro de 2009

ENTALO
Sentado nesta cadeira, hoje cansado de uma vida inteira de luta, olho para minhas mãos calejadas pelo trabalho, os pés deformados pelos dias ininterruptos de esforço para sustentar minha família. Mesmo assim sei que valeu a pena o sacrifício. Meus quatro filhos estão criados, já tenho até netos. Mas olhando para trás, bem lá atrás me volta um entalo que nunca saiu da goela...
Ela sempre me levava nas visitas à casa de sua comadre. Eu devia ter mais ou menos oito anos.
- Edson, se arrume que já vamos à casa de comadre Conceição! – ela mandava, eu obedecia. Toda arrumada e perfumada segurava minha mão e gritava para Josefa:
- Tome conta de seus irmãos que já volto!
Mas minha irmã sabia que nessas viagens à casa da comadre, minha mãe se demorava, principalmente porque nosso pai estava viajando e só chegaria dali a dois dias. Ele era sapateiro, desses que fazem calçados de todo tipo para crianças e adultos. Nessas viagens ele vendia nas cidades vizinhas acompanhado de um sobrinho seu. Dele eu tenho saudades.
Quando chegávamos à casa de Dona Conceição, éramos recebidos com grande alegria na porta da frente. Era uma porta dessas divididas ao meio, onde a parte de cima funcionava como janela. Dona Conceição era uma mulher alta, muito magra que trazia sempre o cabelo amarrado no alto da cabeça. Tinha dentes muito grandes e afastados. Sua casa ficava a duas quadras da nossa.
- Como vai, comadre? – perguntava ela.
- Tudo como Deus quer. – respondia-lhe minha mãe.
- Vamos, entrem! – convidava a comadre.
A casa era pequena, toda pintada de azul por dentro. Logo à entrada ficava um sofá preto de dois lugares e bem na frente estava o quarto. Mas a porta que dava para o quarto ficava do lado, na seqüência de um pequeno corredor desses que tem toda casa estreita e conjugada. Uma cortina de chitão separava essa entrada onde ficava o sofá do corredor.
- Sente-se aqui! – mamãe me ordenava. Ali, naquele sofá eu sentava e sabia que assim permaneceria por extenso espaço de tempo, enquanto as duas seguiam pelo corredor. Dona Conceição não tinha filhos nem marido. Mesmo assim continuava amiga de minha mãe. Ela sempre dizia que eram amigas de muitos anos, por isso se tornou madrinha de Josefa. Quando meu pai estava viajando tudo isso se repetia. No dia que ele chegava minha mãe não visitava a tal comadre, mas também aquela alegria, aquele jeito comunicativo que as pessoas elogiavam na minha mãe, desapareciam. O que se via era uma mulher mal humorada, quando precisava se dirigir a mim ou a meus irmãos e principalmente a meu pai. Hoje eu percebo que havia essa mudança de comportamento nela, mas na época eu não enxergava isso. Ela era apenas minha mãe a quem eu devia obediência e respeito.
Lá para dentro, na casa de dona Conceição não se ouvia nada. Somente depois de um longo tempo de espera mamãe aparecia, se despedia da comadre, me tomava pela mão e retornávamos a nossa casa. O caminho inteiro eram só risadas e felicidade. Eu também voltava feliz, simplesmente pelo fato de ver minha mãe feliz.
Ela era muito bonita. Tinha uma pele macia, cabelos encaracolados até os ombros e um par de longas pernas torneadas. Mas todos diziam que eu puxei a meu pai, assim como meus irmãos. Somos alvos de olhos verdes. Só os cabelos são encaracolados como os da nossa mãe. A casa em que morávamos não era grande, mas tinha um terraço bem amplo onde a gente costumava brincar. Era lá que meu pai jogava bola conosco, quando não estava no quartinho fazendo sapatos. Se o jogo de bola fosse na frente de casa meu pai logo dizia:
- Pegue os tijolos, Edson, para fazer as traves.
A rua não era calçada e também não havia movimento de carros, naquele tempo.
-Deixa a gente brincar também Seu Clóvis! – pediam os garotos da vizinhança.
- Forme o time, Zelito que depois são vocês.
Zelito todo feliz começava a escalar seu time. Os garotos menores já sabiam que teriam de esperar por outra oportunidade ou então apelavam para meu pai:
- Seu Clóvis, depois a gente pode jogar? – perguntava em tom de apelo Geraldinho.
- Jogam sim! daqui a pouco são vocês!
Era muito bom, quando meu pai estava em casa. Eu era mais feliz. Mas depois de uma ou duas semanas ele se despedia da gente levando uma caixa enorme de calçados para vender. Não adiantava chorar nem pedir para ele ficar. Eu era o mais velho e já entendia que aquela era sua obrigação como pai de família. Trazer o sustento dos filhos.
No dia seguinte, recomeçavam os passeios de minha mãe e eu era obrigado a acompanhá-la:
- Vamos, Edson!
- Já vou, mãe. Já vou.
E repetíamos o percurso até aquela casa conjugada a duas quadras da nossa.
Com seus enormes dentes, escorada na porta a comadre dizia:
- Entre, comadre!
A vizinha ao lado botou e tirou a cabeça da janela rapidamente querendo ver quem era.
- Fique aqui me esperando. – apontando o sofá, minha mãe nem me olhava e já entrava de casa a dentro.
Sempre tive a curiosidade de conhecer a casa de dona Conceição, mas nunca passei daquele sofá. Ali ficava sentado, quietinho até mamãe voltar. Mas naquele dia ouvi uma tosse estranha, diferente.
-“Cof, cof!”.
Será que havia mais alguém naquela casa? Foi a pergunta que me veio. O silêncio recaiu mais uma vez. Depois ouvi sussurros. Fiquei quieto. O coração acelerou. O que estava acontecendo? Eu me perguntava mais uma vez. Ouvi então passos lentos em direção ao corredor. Alguém saiu daquele quarto, eu percebi. Foi então que tomei coragem e mesmo com as pernas trêmulas, puxei o pano que servia de cortina e pude vê-lo: era um homem alto, forte e negro que estava saindo do quarto trajando apenas um calção vermelho. Não pude ver seu rosto, pois ele saiu em direção aos fundos da casa. Ali permaneci. Não sei se imobilizado pelo choque ou pela curiosidade. Depois de alguns instantes minha mãe cruzou a mesma porta.

Autora: (*) Maria Margareth da Silva Pereira - Especialista em Literatura Comparada – Ceará-Mirim RN

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