
Eu estava com minha tia Raimunda e minhas primas Vanda e Vanise. Não vestira a roupa nova, porque ainda não chegara o dia oito, mas, naquele aperto causado pelo aglomerado de pessoas que agora se formava na porta da igreja, percebi que um rapaz olhava fixamente na minha direção. O corte do seu cabelo lembrou-me imediatamente os militares. Seria um deles? Perguntei-me. Apertando-se entre as pessoas que tentavam se deslocar do patamar da igreja, vinha ele na minha direção e, quando chegou bem perto não tive dúvidas de que seu olhar era dirigido a mim mesma. Quanta vergonha senti naquela hora. Foi então que o reconheci. Era o rapaz do sino. Tenho certeza de que era. À medida que as pessoas iam saindo do patamar da igreja, ele ficou bem juntinho de mim e seguiu-me escadaria abaixo. Minha tia e primas foram andando na frente. Tia Raimunda morava, nessa época, próximo ao grupo escolar Barão de Ceará - Mirim. Seguimos eu e ele atrás cortando a praça. Àquela altura desisti de pedir para minha tia nos levar para vermos o parque e os botequins. A surpresa de o reencontrar depois de tanto tempo me fez esquecer o passeio pela festa.
Mais adiante ele quis puxar conversa meio sem jeito:
─ Como você está bonita. Não é mais aquela menina...
─ É. O tempo passa e a gente muda... ─ respondi olhando para o chão de barro batido ao seguir rua abaixo.
Éramos muito jovens ainda. Não sabíamos o que deveríamos conversar. Nesse instante ele colocou a mão no meu ombro. Rapidamente eu a tirei.
─ O que houve?
─ Você não é meu namorado! Como toma a liberdade de colocar a mão no meu ombro? ─ respondi rispidamente.
─ Mas eu pensei... ─ Antes de terminar a frase ele se calou. Seguiu então em silêncio.
Percebi que não gostara do que fiz. Mas não podia ser diferente. O que ele pensa que eu sou? Só porque vem da cidade grande acha que pode tomar liberdade comigo? E o que as pessoas vão pensar? Não. Eu o conhecia de longe apenas. Sabia que se chamava Luís e que era filho do carpinteiro Zezinho e isso não bastava para deixa-lo colocar a mão no meu ombro. Seguimos então lado a lado até a porta da casa da minha tia. Pensei que ao chegarmos lá ele tentaria puxar assunto novamente. Foi em vão.
─Até outro dia. ─ Falou isso e voltou rua acima.
Como aquela frase seca e aquele olhar distante doeram no meu peito. Fiquei sem palavras, parada por alguns instantes olhando para ele sem acreditar que aquilo estava acontecendo. Na verdade eu sabia quem ele era, mas não o via tem muito tempo. Como poderia lhe dar tal liberdade? Melhor que seja assim. Quis me conformar com sua atitude. No entanto, a angústia sentida me fazia refletir como ele era diferente do rapaz que eu imaginei durante tanto tempo. Meu castelo de sonhos desmoronava.
Quando entrei no quarto as meninas me olharam como a perguntar sobre o que se passara, mas nada foi dito. Penso que perceberam minha decepção. Já deitada, o passado revisitou-me.
Sempre nas férias eu vinha para a casa da minha tia Rosário na Rua São João. A minha tia era muito boazinha comigo não tinha besteira com nada. Ela é irmã da minha mãe que por sua vez é irmã de tia Raimunda. Eu devia ter uns dez anos e adorava o pé de siriguela que tinha no quintal. A casa era muito grande como a maioria das casas vizinhas. Do quintal, podíamos ver as torres da igreja. Eu e minha prima Cleide corríamos para lá, quando o sino começava a badalar as chamadas para a missa.
Ficávamos a olhar não para o ir e voltar do sino, e sim ficávamos, à espera de que, ao acabarem as badaladas, ele de longe acenasse para nós com o lenço branco.
Eu ainda era muito menina, mas aquele rapaz que mal podia vê-lo de tão pequenininho na janela da torre, para mim era o meu namorado. Nunca comentei isso com minha prima Cleide, nem com ninguém, para que não pensassem que eu era enxerida. E também a prima Cleide ficava toda assanhada e dizia que ele acenava para ela. Eu não queria arrumar confusão com ela, mas era para mim que ele acenava. Tenho certeza disso.
Certa vez ela falou:
─ Ele nunca esquece de acenar para mim, por isso que eu corro para o quintal, quando o sino começa a badalar. Nunca o vi de perto, porém deve ser bonito, alto. Um dia vou esperar que ele saia da igreja para vê-lo de perto e quem sabe conversarmos. ─ Ela dizia isso toda se exibindo, como se estivesse diante dele.
─ O que você acha Helena?
Eu não tinha noção do que responder. Disse apenas:
─ Acho ótimo! Assim vocês conversam.
Minha prima Cleide era mais velha, por isso queria se mostrar adulta e mais sabida do que eu. Aquilo não me importava muito, porque era para mim que ele acenava. Eu não tinha dúvidas disso, pois meu coração me dizia que ele também gostava de mim. Coisa de criança, talvez.
Nas férias do ano seguinte, ele não estava lá para acenar o lenço branco ao final das badaladas do sino.
─ O que aconteceu? ─ Perguntei à prima Cleide. De cabeça abaixada ela me respondeu:
─ Eu soube que ele foi servir à marinha.
─ Mas e a conversa que você ia ter com ele?
─ Nunca aconteceu. Você sabe que meu pai não deixa que eu saia de casa e muito menos fique por ai conversando com os rapazes.
Ainda bem. Pensei então: um dia nos encontraríamos eu e ele e quem sabe os sinos da igreja não badalariam em homenagem a esse encontro!
Maria Margareth da Silva Pereira - Especialista em Literatura Comparada
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