CRÔNICAS SENSORIAIS - 5ª LEMBRANÇA
Numa época muito distante quando ainda não havia internet, e, portanto não existiam também e-mails, já diziam os nossos velhos sábios: “o vento leva as palavras para outros ouvidos”.
Hoje também o vento continua levando as palavras. Ele não abandonou este ofício, embora saiba que pode contar com a tecnologia. Mas, cá prá nós, como é gostoso receber do vento as palavras líricas que os amigos nos trazem.
E então, querendo dar continuidade a estas crônicas ponho-me a escrever. Passada a quarentena, retorno trazendo papeis circunstanciais, lembrando a grande Cora Coralina, que assim chamava os velhos papeis guardados anos e anos.
Todos nós temos este tesouro, não é verdade? Alguns têm fisicamente no armário e também na alma, outros apenas na alma, mais não conseguimos viver sem eles. São nossos registros, a nossa história.
Às vezes vamos até lá para buscar algo que nos lembramos e sabemos que podem nos ajudar agora, e há aqueles que nunca descem aos porões do espírito, pois temem se deparar com papeis circunstanciais que não desejam jamais encontrar.
Quanto a mim, não tenho de que ter medo. Empurro a porta do quarto que guarda estas memórias, passo a mão pela tramela e liberto a parte superior da porta, entro e busco minhas histórias para compartilhar com vocês.
Convido a viverem comigo, pelo menos em parte, algumas das histórias de assombração da Casa Grande. Ela era a maior da fazenda Santa Maria, toda rodeada de alpendres, com três salas grandes, oito quartos, além das outras dependências indispensáveis.
Poucas vezes no ano era habitada. Dr Paulo, proprietário, vinha raramente com a família, por ocasião das festas juninas e em outras datas esporádicas.
A Casa Grande passava a maior parte do ano sendo habitada pelos morcegos, os maribondos-de-fogo e as almas penadas. Isto mesmo, os fantasmas que se divertiam pregando peças àqueles que tivessem a ousadia de entrar naquela casa.
Lembro-me de algumas estórias. Seriam verdades? Nunca vi nenhuma alma naquela casa, mas é inegável que fatos estranhos e horripilantes aconteciam por lá.
Numa noite, certo homem que havia chegado à fazenda, mostrou-se destemido e pediu a papai para dormir na Casa Grande. Queria mostrar a todos os moradores sua coragem, e provar que tudo aquilo que se falava naquelas redondezas não passava da imaginação do povo.
__Você quer dormir nos alpendres? Perguntou papai.
__Não senhor, eu quero dormir dentro da casa mesmo.
__Tem certeza disto?
Ele respondeu balançando a cabeça afirmativamente.
Na fazenda a noite começava cedo, dezoito horas já estava escuro, no muito às vinte horas, era o limite para as famílias se recolherem aos seus aposentos. E os homens, muitos dormiam mais cedo, haja vista estarem bastantes cansados dos afazeres rurais.
Não havia televisão, luz elétrica. A noite trazia sempre o cenário da escuridão, o coaxar dos sapos, o vôo rasante dos morcegos, a distante luz das estrelas e às vezes a beleza da lua.
Papai comentou com mamãe: “__Não dará meia-noite e este homem estará à nossa porta pedindo outro lugar para dormir”. E lá foi nosso Dom Quixote, com a rede embaixo do braço, uma faca-peixeira na cintura, chapéu de couro, cigarro brejeiro aceso, chaves balançando nas mãos, as muitas chaves que abriam as portas daquela casa.
Subiu de forma audaciosa os batentes que davam acesso à porta principal. Abriu-a, as fechaduras rangeram, o homem recebeu um vento frio e forte na sua fronte. A escuridão era grande. Ele entrou, acendeu a lamparina e se pôs a caminhar por dentro da casa.
Explorava todos os cômodos. Silêncio absoluto. Não havia mais ninguém ali, somente ele. Foi a cozinha. Panelas e fogão com sinais claros que há muito não se cozinhava naquela casa. Tudo transmitia abandono, solidão, ausência de vida.
Somente os morcegos voavam zunindo de um canto a outro e eram muitos. Nosso herói procurou um quarto, um dos que ficava no meio do corredor, armou a rede, deixou a lamparina acesa sobre um tamborete, a faca peixeira ao alcance das mãos.
Antes de deitar fez suas rezas costumeiras. Cobriu-se com um lençol de saco de algodão e desejou dormir, desejou, mas não conseguiu.
A noite cobria a fazenda e de forma muita mais intensa, abraçava a Casa Grande. Ouvia ele, apenas o barulho do vento passando por sobre o telhado, os morcegos no entra e sai em busca de insetos, o balançar dos galhos no pomar. Tudo aparentava um quadro pacífico, prometendo uma noite tranqüila e serena.
Pouco tempo depois que ele estava deitado e já quase dormindo, escuta uns passos firmes e fortes bem no alpendre ao lado do seu quarto. Seja lá o que fora aquilo resolveu parar ao lado da janela e soltar um bafo quente, que passou pelas brechas e adentrou no quarto.
Não esqueçam que este homem tem coragem. Ele levantou-se de súbito, faca na mão, ficou de lado da janela e a abriu e qual não foi sua surpresa ao perceber que era um jumento, que sempre dormia ali.
Voltou à rede. Cobriu-se novamente e cada vez mais tinha a certeza que todas aquelas estórias não passavam de invenção do povo. A chama da lamparina estava branda, não demoraria muito, alguns minutos a mais e o querosene acabaria.
O silêncio absoluto voltou a reinar. Ele já estava quase dormindo quando escuta algo parecido com um som de quem sopra impetuosamente a chama da lamparina e a apaga. “Fôooo”. Foi o que ele ouviu debaixo do lençol.
Pensou: “Acabou o querosene”. Mas não fora isto. Pouco depois sente que alguém passa por debaixo da sua rede. Seus cabelos arrepiam, seu corpo treme, sua garganta seca, seu coração acelera, sua mente divaga.
Mas ele é corajoso. Destemido, bruto, homem com H maiúsculo. E retoma as rédeas da situação e fala alto: “__Que bixiga é isto? Quem está aqui?” Fala isto e serpenteia no ar a lâmina da faca, como quem busca na escuridão encontrar algo. Não há resposta, não existe ninguém ali, somente ele. Reacende a lamparina, caminha pela casa, tudo como antes.
Volta à rede. Começa a sentir que não foi uma boa idéia ter vindo sozinho para aquela Casa Grande. Mas desistir, jamais! Sertanejo não é homem para retroceder em suas resoluções.
E lá, deitado, coberto, pensativo, apenas os olhos fora do lençol, por uma pequena abertura, vigilantes, atentos aos morcegos que vão e vem. Os minutos demoram a passar. As pálpebras pesam. Ele aos poucos vai sendo rendido pelo cansaço.
Cochila e é despertador por um vozario que vem da cozinha. “Não é possível?” Pensa. “Não há ninguém”. Mas as conversas vão se tornando intensas, gargalhadas, panelas sendo movimentadas, barulho de lenha sendo posta do fogão. Ordens são dadas por uma voz feminina a outras mulheres que simplesmente respondem: “Certo Sinhá...”
Ele belisca a si próprio para ter certeza que não está sonhado. E no quarto vizinho ao seu, escuta claramente quando a porta é aberta e alguém que calça botas grandes, entra e derruba no solo um grande saco de feijão, dentro do qual rola um jerimum e vai de encontro à parede.
A esta altura, nosso quase herói, o homem que até então teve coragem suficiente para enfrentar tantos problemas, percebe que suas reservas estão se acabando, assim como o querosene da lamparina. Que rezar, mas a palavras não são articuladas. A casa toda parece clara àqueles seres do além.
E para encurtar nossa macabra estória, ele sente que os punhos da sua rede são pegos com duas mãos e balançadas bruscamente. Foi a gota d’agua.
Sai numa disparada desenfreada da Casa Grande até nossa casa. Papai o atende, dá-lhe uma garapa forte de açúcar, escuta sua narração.
__Raimunda, que horas são? Pergunta papai.
__ Nove e meia. Responde mamãe, que já vem trazendo outra rede para o homem. Que a recebe cabisbaixo e envergonhado.
Papai, conhecedor da personalidade humana e sabendo que precisa daquele homem com sua estima elevada, fala para ele:
“__Você até que demorou lá dentro. Tem gente que corre ainda com o bafo do jumento”
São histórias ou estórias? São fatos, mitos ou lendas? Não sei responder. Mas posso afirmar que fizeram parte da minha infância, que são assim como canto-chão, que soam no claustro da vida e faz reviver em forma de Completas.
Hoje também o vento continua levando as palavras. Ele não abandonou este ofício, embora saiba que pode contar com a tecnologia. Mas, cá prá nós, como é gostoso receber do vento as palavras líricas que os amigos nos trazem.
E então, querendo dar continuidade a estas crônicas ponho-me a escrever. Passada a quarentena, retorno trazendo papeis circunstanciais, lembrando a grande Cora Coralina, que assim chamava os velhos papeis guardados anos e anos.
Todos nós temos este tesouro, não é verdade? Alguns têm fisicamente no armário e também na alma, outros apenas na alma, mais não conseguimos viver sem eles. São nossos registros, a nossa história.
Às vezes vamos até lá para buscar algo que nos lembramos e sabemos que podem nos ajudar agora, e há aqueles que nunca descem aos porões do espírito, pois temem se deparar com papeis circunstanciais que não desejam jamais encontrar.
Quanto a mim, não tenho de que ter medo. Empurro a porta do quarto que guarda estas memórias, passo a mão pela tramela e liberto a parte superior da porta, entro e busco minhas histórias para compartilhar com vocês.
Convido a viverem comigo, pelo menos em parte, algumas das histórias de assombração da Casa Grande. Ela era a maior da fazenda Santa Maria, toda rodeada de alpendres, com três salas grandes, oito quartos, além das outras dependências indispensáveis.
Poucas vezes no ano era habitada. Dr Paulo, proprietário, vinha raramente com a família, por ocasião das festas juninas e em outras datas esporádicas.
A Casa Grande passava a maior parte do ano sendo habitada pelos morcegos, os maribondos-de-fogo e as almas penadas. Isto mesmo, os fantasmas que se divertiam pregando peças àqueles que tivessem a ousadia de entrar naquela casa.
Lembro-me de algumas estórias. Seriam verdades? Nunca vi nenhuma alma naquela casa, mas é inegável que fatos estranhos e horripilantes aconteciam por lá.
Numa noite, certo homem que havia chegado à fazenda, mostrou-se destemido e pediu a papai para dormir na Casa Grande. Queria mostrar a todos os moradores sua coragem, e provar que tudo aquilo que se falava naquelas redondezas não passava da imaginação do povo.
__Você quer dormir nos alpendres? Perguntou papai.
__Não senhor, eu quero dormir dentro da casa mesmo.
__Tem certeza disto?
Ele respondeu balançando a cabeça afirmativamente.
Na fazenda a noite começava cedo, dezoito horas já estava escuro, no muito às vinte horas, era o limite para as famílias se recolherem aos seus aposentos. E os homens, muitos dormiam mais cedo, haja vista estarem bastantes cansados dos afazeres rurais.
Não havia televisão, luz elétrica. A noite trazia sempre o cenário da escuridão, o coaxar dos sapos, o vôo rasante dos morcegos, a distante luz das estrelas e às vezes a beleza da lua.
Papai comentou com mamãe: “__Não dará meia-noite e este homem estará à nossa porta pedindo outro lugar para dormir”. E lá foi nosso Dom Quixote, com a rede embaixo do braço, uma faca-peixeira na cintura, chapéu de couro, cigarro brejeiro aceso, chaves balançando nas mãos, as muitas chaves que abriam as portas daquela casa.
Subiu de forma audaciosa os batentes que davam acesso à porta principal. Abriu-a, as fechaduras rangeram, o homem recebeu um vento frio e forte na sua fronte. A escuridão era grande. Ele entrou, acendeu a lamparina e se pôs a caminhar por dentro da casa.
Explorava todos os cômodos. Silêncio absoluto. Não havia mais ninguém ali, somente ele. Foi a cozinha. Panelas e fogão com sinais claros que há muito não se cozinhava naquela casa. Tudo transmitia abandono, solidão, ausência de vida.
Somente os morcegos voavam zunindo de um canto a outro e eram muitos. Nosso herói procurou um quarto, um dos que ficava no meio do corredor, armou a rede, deixou a lamparina acesa sobre um tamborete, a faca peixeira ao alcance das mãos.
Antes de deitar fez suas rezas costumeiras. Cobriu-se com um lençol de saco de algodão e desejou dormir, desejou, mas não conseguiu.
A noite cobria a fazenda e de forma muita mais intensa, abraçava a Casa Grande. Ouvia ele, apenas o barulho do vento passando por sobre o telhado, os morcegos no entra e sai em busca de insetos, o balançar dos galhos no pomar. Tudo aparentava um quadro pacífico, prometendo uma noite tranqüila e serena.
Pouco tempo depois que ele estava deitado e já quase dormindo, escuta uns passos firmes e fortes bem no alpendre ao lado do seu quarto. Seja lá o que fora aquilo resolveu parar ao lado da janela e soltar um bafo quente, que passou pelas brechas e adentrou no quarto.
Não esqueçam que este homem tem coragem. Ele levantou-se de súbito, faca na mão, ficou de lado da janela e a abriu e qual não foi sua surpresa ao perceber que era um jumento, que sempre dormia ali.
Voltou à rede. Cobriu-se novamente e cada vez mais tinha a certeza que todas aquelas estórias não passavam de invenção do povo. A chama da lamparina estava branda, não demoraria muito, alguns minutos a mais e o querosene acabaria.
O silêncio absoluto voltou a reinar. Ele já estava quase dormindo quando escuta algo parecido com um som de quem sopra impetuosamente a chama da lamparina e a apaga. “Fôooo”. Foi o que ele ouviu debaixo do lençol.
Pensou: “Acabou o querosene”. Mas não fora isto. Pouco depois sente que alguém passa por debaixo da sua rede. Seus cabelos arrepiam, seu corpo treme, sua garganta seca, seu coração acelera, sua mente divaga.
Mas ele é corajoso. Destemido, bruto, homem com H maiúsculo. E retoma as rédeas da situação e fala alto: “__Que bixiga é isto? Quem está aqui?” Fala isto e serpenteia no ar a lâmina da faca, como quem busca na escuridão encontrar algo. Não há resposta, não existe ninguém ali, somente ele. Reacende a lamparina, caminha pela casa, tudo como antes.
Volta à rede. Começa a sentir que não foi uma boa idéia ter vindo sozinho para aquela Casa Grande. Mas desistir, jamais! Sertanejo não é homem para retroceder em suas resoluções.
E lá, deitado, coberto, pensativo, apenas os olhos fora do lençol, por uma pequena abertura, vigilantes, atentos aos morcegos que vão e vem. Os minutos demoram a passar. As pálpebras pesam. Ele aos poucos vai sendo rendido pelo cansaço.
Cochila e é despertador por um vozario que vem da cozinha. “Não é possível?” Pensa. “Não há ninguém”. Mas as conversas vão se tornando intensas, gargalhadas, panelas sendo movimentadas, barulho de lenha sendo posta do fogão. Ordens são dadas por uma voz feminina a outras mulheres que simplesmente respondem: “Certo Sinhá...”
Ele belisca a si próprio para ter certeza que não está sonhado. E no quarto vizinho ao seu, escuta claramente quando a porta é aberta e alguém que calça botas grandes, entra e derruba no solo um grande saco de feijão, dentro do qual rola um jerimum e vai de encontro à parede.
A esta altura, nosso quase herói, o homem que até então teve coragem suficiente para enfrentar tantos problemas, percebe que suas reservas estão se acabando, assim como o querosene da lamparina. Que rezar, mas a palavras não são articuladas. A casa toda parece clara àqueles seres do além.
E para encurtar nossa macabra estória, ele sente que os punhos da sua rede são pegos com duas mãos e balançadas bruscamente. Foi a gota d’agua.
Sai numa disparada desenfreada da Casa Grande até nossa casa. Papai o atende, dá-lhe uma garapa forte de açúcar, escuta sua narração.
__Raimunda, que horas são? Pergunta papai.
__ Nove e meia. Responde mamãe, que já vem trazendo outra rede para o homem. Que a recebe cabisbaixo e envergonhado.
Papai, conhecedor da personalidade humana e sabendo que precisa daquele homem com sua estima elevada, fala para ele:
“__Você até que demorou lá dentro. Tem gente que corre ainda com o bafo do jumento”
São histórias ou estórias? São fatos, mitos ou lendas? Não sei responder. Mas posso afirmar que fizeram parte da minha infância, que são assim como canto-chão, que soam no claustro da vida e faz reviver em forma de Completas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário